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domingo, 26 de julho de 2009

Dedicatória a uma puta amarga


No meio dos rios desse inferno

dessa poeira ácida, dessa sujeira ártica,

nesse espasmo flácido se colore o amargo púrpura

que recheia esse bordel virulento, cheio de ratos mortos.

Penetro o balcão pra encontrar qualquer bebida acre

pra escorrer o doce que se solta desse líquido forte

E de súbito vejo dançar na luz suja a frígida puta sobre um palco mal arranjado numa falsa tentativa de sedução

Não existe espaço para o lirismo nesse lugar

nem mesmo para o lirismo bêbado barato e cheio de ratos a mordiscar os lados

Só existe espaço para a mulher murcha, quase nua no palco de caibros frágeis, tão igual à sua platéia de animais gordos, todos há muito tempo broxados, salivando por qualquer sombra de vigor sem nem saber

rondando feito lobos a presa que mais do que tudo é carne

carne que nem triste é porque já não sangra

Por trás da pele transparente se vê os ossos, matéria de ferro, aço, parede nua, concreto, chão de terra batida,

esquece o fogo, a carne nunca se pareceu tanto com o metal frio da máquina.

E eu a observar do balcão a mais triste cena de todos os tempos, a ceia dos que não têm fome e nem sequer sabem disso

Eu mergulho, só mais um porre qualquer

Mas espera!

Ainda tem sombra de luxúria entre esse tantos trapos

Um pedaço de seda desgastado e ainda brilhante amarrado no tornozelo esquerdo e que ninguém presta atenção

Ainda existe um ritmo fraco de música, um brilho apagado, nesse inverno de vermes paralíticos e mudos, ainda existe sangue a ser bebido

E a puta amarga se senta ao final do ato, na beira do palco numa insólita espera por qualquer coisa dura o bastante que a faça sangrar de novo.

Por Maria Cecìlia Lara

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Tosse sem fim


Eu tossi cada pedaço engasgado de mim

numa tosse doída e quase sem fim.

Eu arranquei com minhas próprias mãos

aquele oco que palpitava dentro do coração.


Não foi suficiente.

Continuo mancando da perna direita

como se nada sustentasse

essas cores escuras dentro da pele.


Com as mãos trêmulas eu deslizo

nas cores cintilantes

e me entrego a tudo que nego

de forma marcante.


Conheci as partes mais escondidas que possuo

Viajei por elas por longos dias.

Apalpei-as como quem apalpa a si

Olhando de fora como se jamais estivesse tão dentro.


Permaneci ali.

No silêncio obscuro

Que fazia um barulho claro dentro do peito.

Sentei e ali fiquei.


Talvez eu devesse ter ido embora

Antes de saber de tudo que hoje eu sei.

Talvez não.

Eu sei de mim, como não sabes de ti.


Naquele pedaço que tossi,

Eu me vi em pedaços toda inteira

Quanta bobeira!

Segurei a tosse com as mesmas mãos que ainda tremiam.


Num pulo de quase um segundo

Pensei novamente em partir

Descobri que depois de já estar aqui

Difícil é sair de si.


Essa vida interior tão guardada

Tão inexplorada

Atrai aqueles que têm medo de si

E que tem medo de deixar-se.


Eu fico ali sentada

Como aquele que é expectador de si

Olho para dentro e novamente me apalpo

E me arranco de mim.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Dança a dois


Sobre a sinceridade

E toda sua dança deslizante

Que envolve corpos e almas

No silêncio escuro.


Sobre o peito aberto

Perto da carne e o sangue

Aquela transparência estonteante,

Vermelho vivo, marcante.


Desliza,

Vira e delira.


Sobre a poesia

Com o papel borrado

E os versos trêmulos

Quase engasgados.


Sobre a mudez do movimento

E o balanço da voz

Esmiuçado na embriaguez da noite

E no vento da manhã, ainda preta e branca


Acontece,

Aquece e estremece.


Sobre o carinho

Disfarçado entre o desejo e medo

Pulsações elétricas debaixo das viagens mudas

Como o cheiro do orvalho fresco.


Sobre tudo o que envolve

Olhares, peles, sorrisos,

Entre abraços distantes

Da música mutante, amante.


Cala,

Repara e exala.


Sobre a intensidade

Que em meio à novidade

Faz do prazer o ritmo da brisa

Como o pássaro que voa e leva nas asas tudo que sabe.


Sobre o silêncio

Que revela o partir

Antes de entrar e sentar, lembre-se da metade miúda partida

Que partiu.


sábado, 18 de julho de 2009

Sinapse cardíaca


Nesse peso de folha virada o limite do tempo

Tempo que vai e leva

Quase que arranca da gente o que é nosso.

Aquilo que a gente escuta de fora

É nosso silencio de dentro.

E o silencio de fora

É aquele barulho alto guardado lá dentro.

Foi escutando aquela cor da brisa

E aquele cheiro do vento

Que eu mergulhei nesse pedaço de mim


Tem tanta saudade naquele cheiro

E tanto desejo naquela cor

Uma sinapse cardíaca que nunca nos deixa a sós

Nesse leito vazio, que tem o eco oco do nada repleto de si.

Mergulhar como o peixe mais sincero dos mares

E como o pássaro mais seguro dos ares

Feito aquele que arranca de si a coragem que nunca não teve

E joga-se no mundo como só e único.

Triste e sozinho, com fome de vida pelos mares e ares.

Feito aquele que nasceu dentro de si e ficou por ali

E não sabe da beleza desse abraço nos mergulhos profundos.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Aquele olhar


Aquele olhar que muito viajou de forma meiga e doce antes de fixar-se ali.

Fixou-se calmamente, observando cada pedaço vago de si.

Absorveu tudo que havia por dentro e por fora e depois guardou num canto oco.

Canto mudo que gritava o nada de forma visceralmente bela.

Naquele momento todo seu carinho e delicadeza já eram parte de sua mudez berrada.

Arrancou de si um borro de sangue ainda cheirando a sua doçura singela e pintou seus lábios de dor.

Num sorriso eterno deixou escapar o cheiro dessa novidade mórbida.

Cheiro de alma sempre dançante nas valsas e tangos noturnos.

Aquele olhar permaneceu fixo no canto de voz que cheira todos os seus sorrisos.

Escapou de si aquele peso que tem a leve sensação de melodia cativante.

Escapou a beleza daquele carisma que envolve olhares alheios.

Os lábios ainda estavam envolvidos na dança muda.

O borro de sangue pintou a valsa da noite com a própria alma.

Tudo o que havia absorvido por dentro e por fora já eram o nada que jamais arrancara de si.

Sobrava ainda sua doçura e seu carinho espalhados no canto de cada tango.

Entre a troca de olhares tudo permanece fixo depois daquele misterioso ponto móvel.

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